Muito antes de qualquer laboratório, patente ou indústria farmacêutica, o quebra-pedra já era remédio. O uso da planta Phyllanthus niruri faz parte do conhecimento ancestral de povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares brasileiros, transmitido de geração em geração como auxílio no cuidado com distúrbios urinários. É esse saber, acumulado ao longo de séculos, que agora dá origem a um avanço inédito na saúde pública brasileira.
Em cerca de seis meses, o Brasil deverá ter o primeiro fitoterápico industrializado desenvolvido a partir dessa planta, tendo como ponto de partida o conhecimento tradicional associado. A ciência entra depois, estruturando, validando e transformando em medicamento aquilo que já existia na prática cotidiana das comunidades.
A iniciativa é pioneira justamente por inverter a lógica histórica da inovação em saúde. Não se trata de a ciência “descobrir” a planta, mas de reconhecer que o conhecimento já existia, era aplicado e funcionava. O processo respeita a legislação que regula o acesso ao patrimônio genético e aos saberes tradicionais, garantindo reconhecimento formal e repartição justa de benefícios às comunidades detentoras desse conhecimento.
O desenvolvimento do fitoterápico segue agora os protocolos científicos e industriais exigidos, com o objetivo de garantir qualidade, segurança e padronização. Somente após essa etapa o medicamento poderá ser incorporado ao Sistema Único de Saúde (SUS). Ou seja, o SUS não é a origem da inovação, mas o meio pelo qual esse saber ancestral, já validado pela ciência, poderá chegar de forma ampla à população brasileira.
Para a vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, Priscila Ferraz, o acordo representa um avanço significativo no tratamento de distúrbios urinários e também um marco institucional. Segundo ela, a iniciativa fortalece a capacidade do País de desenvolver soluções em saúde a partir da sua própria biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais que sempre sustentaram práticas de cuidado no Brasil.
O projeto reforça ainda a soberania científica nacional e o reconhecimento de que povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares não são apenas usuários de políticas públicas, mas protagonistas de processos de inovação. O quebra-pedra deixa de ser visto apenas como uma planta popular e passa a ocupar um espaço formal na política de saúde, sem apagar sua origem ancestral.
Esse movimento sinaliza uma mudança concreta na forma como o Brasil pode construir saúde pública: partindo do território, da tradição e do conhecimento vivo, para depois integrar ciência, indústria e sistema público.

